Bom dia novamente! Tomemos as boas energias da última coluna para tratar de um tema tão atual quanto polêmico. As prerrogativas funcionais.
É solo movediço, traiçoeiro, sobre o qual é quase impossível caminhar com segurança. Há muitas paixões e vaidades envolvidas. Falar sobre prerrogativas é a prova iuris et de iure de que não existe neutralidade. Existe, pois, imparcialidade, que é bem diferente, mas quando o assunto nos toca diretamente, sempre vamos acabar puxando a sardinha para o nosso lado, ainda que inconscientemente. Eu vou tentar ser o mais imparcial possível.
E peço, encarecidamente, a todos que procurem compreender que a exposição trazida abaixo é somente a minha opinião, e apenas sobre alguns aspectos. Não é a verdade absoluta, não está certa, nem errada, e não pretendo esgotar aqui o tema (que tem potencial para um Tratado inteiro). É a impressão que tenho a respeito do assunto, já tendo sido advogado por quase uma década e agora Juiz de Direito por pouco menos de quatro anos. Como já estive de ambos os lados dessa desnecessária e lamentável “batalha”, ouso dizer que tenho um ponto de vista privilegiado sobre o assunto que talvez valha a pena conhecer.
Começo falando um pouco da minha experiência pessoal: Minha mãe é brava; deu-me educação, limites e me ensinou a ter respeito, especialmente por autoridades. “Bom dia”, “por favor” e “muito obrigado” nunca fizeram mal a ninguém. Pelo contrário. São chaves-mestras do convívio em sociedade.
Mas tenho a impressão de que estes conceitos tão simples parecem estar minguando, em sério risco de extinção.
O que posso afirmar, inicialmente, é que nos meus quase dez anos de advocacia nunca um magistrado (juiz ou desembargador) deixou de me atender quando bati às portas de seu gabinete. Inclusive, certa feita um Desembargador Federal do TRF4 me tratou tão bem que fiquei até constrangido, ainda mais eu sendo um piá de bosta de vinte e poucos anos de idade, recém-nascido da faculdade.
Também não me lembro de ter sido repreendido em despachos ou durante audiências, apesar de ter cometido alguns erros bem primários no início da carreira. E olhe que uma vez, na pressa, juntei por acidente uma dissertação de mestrado inteira a um processo sobre o qual ela não tinha relação alguma! A bendita estava em cima da minha mesa. Coloquei os documentos para juntada a um processo em cima dela... quando fui pegar para levar para protocolar, ela veio junto. E foi junto... Foi proferido apenas um despacho mandando desentranhar e me devolver, pois “não tinha relação com o processo”. Que vergonha :(
Claro que houveram exceções. Certa feita, ao tentar suscitar uma questão de ordem perante um Tribunal durante o julgamento de um agravo (lembre-se que não há espaço regimental, em regra, para sustentação oral em agravos), fui esculhambado pelo Desembargador Presidente daquela Câmara Cível, de modo bastante deselegante, para dizer o mínimo. E lembro também de outra vez em que, num domingo, fui até o Juiz de Plantão com uma questão urgente e ele não deu a menor bola para o que eu dizia, pois estava mais atento ao jogo de futebol que estava passando na televisão do gabinete. Batemos boca... enfim, foi desagradável.
Como magistrado, sempre atendi a todos os advogados que me procuraram. Indico até hotéis e restaurantes da cidade para os perdidos que vêm de fora! Até precisei prender um certa vez, pois se apresentou como advogado, mas estava com o registro na Ordem suspenso. Mas nunca fui maltratado em meu gabinete. Em audiência, vi comportamento inadequado uma única vez, na Justiça Eleitoral há alguns anos. Oportunamente escreverei sobre ela.
Infelizmente, acho que minha experiência pessoal ou pertence a uma época que não existe mais, ou foi pura sorte, pois, atualmente, os conflitos tem sido muito frequentes.
E do que vi até agora, de ambos os lados do balcão imaginário*, posso dizer o seguinte:
Sei que advogar não é fácil. Tanto que eu mesmo não suportei as dificuldades e resolvi partir para outra carreira. Sei que o advogado enfrenta muitos desafios, encontra muitas portas fechadas e não raras vezes é tratado com descaso. Obviamente isso está errado. E as prerrogativas funcionais que lhes são confiadas pelo Estatuto da Advocacia são imprescindíveis ferramentas de manutenção do Estado Democrático de Direito. Isso não se discute.
E mais que isso: são a linha de defesa do cidadão contra os abusos do Poder Público, e serão sempre defendidas pelo Poder Judiciário quando forem injustamente violadas.
Lamentavelmente, porém, alguns (felizmente poucos) “adEvogados” parecem estar esquecendo das célebres lições do Professor Alexandre de Moraes e se valendo de tais direitos e garantias fundamentais como escudo protetor de práticas ilícitas, ou, pior, como carta-branca para arbitrariedade e desrespeito.
Nenhum direito é absoluto. Nem mesmo o direito à vida é absoluto, pois existe pena de morte no Brasil (no Código Penal Militar). Então, é óbvio que o direito de ser atendido pelo Juiz, ou de usar da palavra na Tribuna, ou de retirar autos em carga (etc.), possuem limites! O Juiz pode estar fazendo cocô! Sim, Juízes fazem cocô!!! Pode estar estudando um processo super complicado, para o qual precisa de tempo e silêncio. Pode estar fazendo inspeção no Cartório. Pode estar em audiência, em reunião, ou mesmo atendendo outro advogado que chegou mais cedo. Até pra nascer todos tivemos que esperar nove meses, então, na vida, as vezes temos que esperar um pouco; e as vezes a resposta é não!
E se o “problema” é uma decisão que desagradou, uma prisão ilegal, uma justiça gratuita indeferida... a questão não é de prerrogativas. É, pura e simplesmente, jurisdicional. E nesse caso, por favor, RECORRAM! Numa boa, é pra isso que servem os recursos, não as representações disciplinares ou as “linhas diretas de prerrogativas”.
Informação importante: Juízes em geral não ficam nem um pouco chateados quando suas decisões são submetidas a recursos. Pelo contrário! É o “termômetro” que temos para saber se estamos alinhados com a jurisprudência ou não, pois sempre recebemos um e-mail automático notificando quando o recurso é julgado, e qual o seu teor. É muito gratificante ver que a decisão foi mantida, ou, se for o caso, poder conhecer as razões da reforma para reflexão e eventual revisão do posicionamento. Ou simplesmente não repetir o erro mesmo hehehe.
Voltando ao tema: Lamentavelmente, tenho ouvido quase todos os dias relatos de colegas magistrados a respeito de advogados grosseiros, em postura inadmissível, que invadem gabinetes literalmente “chutando a porta” e sem qualquer cerimônia, anúncio ou o mínimo de respeito. E uns já entram “dando de dedo”, disparando ofensas e fazendo escândalo, tudo sob o “manto” das prerrogativas profissionais. Pior: isso é muito mais frequente com Juízas, em atitude tipicamente covarde contra a candura e a pureza natural das mulheres.
O maior e mais atual expoente dessa “moda” foi o episódio com o Ministro Joaquim Barbosa que todos conhecemos. Não costumo aplaudir sua postura, que geralmente destoa da forma com que, segundo penso, deve se portar um Magistrado. Mas dessa vez eu entendo que ele foi perfeito: simplesmente mandou tirar do local o sujeito que estava sendo inacreditavelmente desrespeitoso com o Presidente do Supremo Tribunal Federal, e dentro do Supremo Tribunal Federal! Nem se alterou, como seria de se esperar. Foi perfeito! A Ordem dos Advogados do Brasil, infelizmente, perdeu a oportunidade de valorizar seus bons e éticos profissionais, e resolveu prestigiar aquele tipo de conduta lastimável através de “nota de apoio” ao sujeito.
Sério, na boa. O que houve com a educação e o respeito às instituições?
Boa educação é dever de todos, especialmente operadores do Direito. É o mínimo. Quem não tem ou não está disposto a usá-la, mesmo quando não houver correspondência do interlocutor, é melhor procurar outra carreira, porque no Direito todos teremos que lidar com pessoas! E gente é o bicho mais lazarento que existe!
Invocar prerrogativas funcionais não dá a ninguém o direito de se arvorar em um poder que não existe contra quem o possui e legitimamente o exerce!
Meus queridos amigos advogados, por favor, pelo nosso bem, de todos nós cidadãos brasileiros, vamos entender uma coisa. O advogado não é uma autoridade. Não exerce poder nem representa qualquer dos Três Poderes da República. É um respeitável profissional liberal, como um médico ou um engenheiro. Sinto muito, mas é a verdade. O advogado é indispensável à administração da Justiça e um artigo inteiro da Constituição lhe foi reservado, mas não é uma autoridade. Quem não conseguir aceitar esse fato, que não é um demérito, mas, com efeito, um fato, é melhor mudar de ramo.
O Juiz, ao contrário, é uma autoridade pública constituída; tecnicamente, trata-se de agente político; um órgão do Poder Judiciário legitimamente investido e que exerce o Poder dentro de suas atribuições, inclusive o poder de polícia. São as regras do jogo, previstas em cláusulas pétreas constitucionais. Preceitos mínimos da democracia; pilares do Estado de Direito.
E vamos rememorar o art. 6o da Lei 8.906/94:
Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.
Perceberam? Consideração e respeito é tão importante que a própria lei determina que tal seja empregado! Invadir um gabinete sem autorização é mais que desrespeito: é conduta típica, passível de prisão em flagrante!
E outra: com efeito, não há hierarquia nem subordinação, como o próprio artigo citado acima nos mostra claramente. Juízes não são subordinados a advogados, e nem a recíproca é verdadeira. Cada um é subordinado hierarquicamente ao seu próprio órgão censor (TED/OAB e CGJ/CNJ). Mas o fato de não haver hierarquia não dispensa o dever de respeito e acatamento para com a autoridade constituída!
O Juiz, por mais grosseiro desrespeitoso que ele venha a ser, é uma autoridade. E mais do que isso: é um órgão, um presentante do Poder Judiciário. Não estou dizendo que ele pode agir com grosseria por ser uma autoridade. Longe disso!!! Mas que deve ser respeitado, ainda que se porte inadequadamente, devendo, tal conduta, ser reportada a seus superiores correicionais, e não combatidas a berros e tapas!
Por favor, não sejam vítimas da síndrome do pequeno poder, a qual, segundo a psicologia, é uma atitude de autoritarismo por parte de um indivíduo que, ao receber um poder, usa de forma absoluta e imperativa sem se preocupar com os problemas periféricos que possa vir a ocasionar. A Síndrome do pequeno poder faz com que as pessoas venham a imaginar que detêm um poder maior do que as outras.
O “poder” de exercer as funções em Juízo, com respaldo das prerrogativas funcionais, não tem o condão de afastar a realidade de que o advogado é um profissional liberal e o Juiz é uma autoridade pública.
Não estou dizendo isso pra desmerecer ninguém! Só quero chamar a atenção para uma realidade que parece esquecida, e que é nociva para a nossa democracia, sob pena de se propagar o caos, a desordem!
O fato de um magistrado eventualmente não estar agindo como dele se espera de modo algum autoriza o advogado a se vestir de Batman justiceiro e passar a desrespeitá-lo, afrontá-lo, ou, pior, ameaçá-lo. Simplesmente provoque seu órgão hierarquicamente superior (lembre-se: não há hierarquia entre advogados, promotores e juízes, então, não é você que vai mandar no Juiz), seja a Corregedoria ou o Conselho Nacional de Justiça, para que adote as providências cabíveis. E acreditem: a porrada vem, e é forte!
E tem outra: já pararam pra pensar que os magistrados também possuem prerrogativas? Estão lá na LOMAN: Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35/79). E uma delas é justamente a de não ser preso, senão em flagrante de crime inafiançável (tais como crimes hediondos, tráfico de drogas, terrorismo, racismo etc.). Porém, há alguns menos avisados – ou completamente alucinados por um poder que acreditam ter, mas não têm – que, ao ter algum bate-boca com um Juiz e acabar sendo preso por tê-lo desacatado, responde com voz de prisão contra o magistrado por “crime de abuso de autoridade”? Hein? Oi???
Duvido que alguém vá ser preso conversando educadamente com um magistrado... Caso aconteça (pouco provável, mas... louco tem em todo lugar) e se a prisão foi ilegal, para tal há o habeas corpus e, eventualmente, a representação perante a Presidência, caso haja prática de crime ou responsabilidade disciplinar.
Para piorar, alguns advogados parecem realmente acreditar que seus clientes acham legal vê-los batendo boca e desrespeitando magistrados, membros do Ministério Público e outras partes em audiência. Outros, ainda menos iluminados, creem piamente que maltratar o Juiz é sinal de bravura, de independência, de “poder”, força, capacidade. Meu amigo, isso é sinal apenas de uma coisa: falta de educação ou frustração.
E o mais inacreditável é que há professores que orientam seus alunos para que, quando forem advogados, desrespeitem magistrados, os afrontem, provoquem suspeições caso vejam que a condenação do cliente é iminente! Sério... nem sei o que dizer sobre isso.
E tem outra: os encrenqueiros de plantão acabam ficando queimados. Como qualquer outro ser humano, nós, Juízes, também conversamos, usamos a internet, temos grupos de e-mails, WhatsApp, Facebook... E a gente comenta sobre os mal-educados. Isso só lhe traz enormes prejuízos profissionais, pois pode acabar ganhando uma antipatia generalizada que inviabilizará sua carreira. Antes que eu viesse aqui para União da Vitória, fiquei sabendo que um advogado conhecido da região conseguiu conquistar a antipatia de todos os então quatro Juízes da comarca. Resultado: todos sentiram estar comprometida sua imparcialidade e passaram a se dar por suspeitos em todos os seus processos, chegando a um ponto em que ele não podia mais trabalhar na cidade! Felizmente o “bom senso” falou mais alto e ele foi pedir desculpas aos ofendidos, que voltaram a julgar seus processos normalmente (quase todos. Um dos colegas foi tão profundamente ofendido que não se considera plenamente isento para julgar seus processos, e continua dando-se por suspeito).
Quando eu passei na OAB eu ganhei um livreto com os dez mandamentos do advogado, escritos por Eduardo Couture. Gosto tanto desse sujeito que em sua homenagem batizei meu filho. Todas as lições são válidas, mas lembrem-se pelo menos do nono mandamento: Esqueça. A advocacia é uma luta de paixões. Se a cada batalha for carregando a sua alma de rancor chegará o dia em que a vida será impossível para você. Terminado o combate esqueça logo tanto a vitória como a derrota.
Agir de forma respeitosa não é se diminuir, baixar a cabeça, se resignar. Pelo contrário. É apenas uma demonstração de inteligência, de profissionalismo, de superioridade, levando a luta para o campo de batalha adequado (seja o processual, seja o correcional). E certamente o local adequado não é nem o gabinete do magistrado e, muito menos, o corredor do fórum. Nem tampouco as redes sociais...
Juízes acertam e erram. Têm dor de barriga. Problemas familiares. São esculachados pelo Tribunal porque usaram um personagem de desenho animado para explicar, de forma simples e didática, a Teoria da Cegueira Deliberada (é... essa foi a boa notícia da semana pra mim...). Então, não é sempre que a gente está no melhor dos bons humores, como todo e qualquer ser humano!
E de tanto levar paulada, de ser ofendido, de ser esculhambado, de ser responsabilizado por todos os males do país... a gente acaba ficando arisco, as vezes até sendo grosso sem querer. E não é sendo mais grosso ainda ou arvorando-se de um poder que não existe que o problema (do cliente, frise-se, que é o que realmente importa) vai ser resolvido. Até porque, talvez valha a pena lembrar que caberá justamente aos juízes fazer valer as prerrogativas dos advogados! Então, sério, qual a vantagem de arrumar briga??
Então, prezados amigos, sejamos inteligentes e profissionais. Tenhamos paciência uns com os outros. Dirijam-se ao Juiz em seu gabinete da mesma forma que gostariam que ele se dirigisse a vocês em seus escritórios. Sobretudo, não esqueçam que se trata de uma autoridade, que merece respeito, se não pela pessoa que exerce o cargo, ao menos pelo cargo ali exercido.
Vocês nem imaginam o poder de um “bom dia”, da gentileza, da humildade. Não é puxar o saco ou ser subserviente, é saber viver em sociedade. Você sabe que não é uma boa ideia ser boca-dura com o flanelinha que vai tomar conta do seu carro, certo? E vai ser boca dura com o Juiz, que é tão ser humano quanto o flanelinha?
Digo, repito e vou insistir até que todo mundo se canse da minha chatice e concorde, nem que seja pra eu parar de escrever: estamos todos do mesmo lado!
O “balcão”, com seus lados de dentro e de fora, só existe na mente dos menos experientes!
Não chute a porte do gabinete. Vamos todos tacar-lhe o pau é no balcão imaginário, pra bem longe, e lutar juntos pela Justiça!
Termino citando meu amigo Rogério Ribas, em referência a Calamandrei: Somos todos frutos da mesma árvore da Justiça.
Um cordial abraço!
Sergio Bernardinetti
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