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quarta-feira, setembro 03, 2014

NÓS, OS JUÍZES: OS GARÇONS DO RESTAURANTE MAIS SUJO DA CIDADE

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Bom dia bom dia novamente, em mais uma quarta-feira destes nossos encontros para tratarmos de questões da mais alta relevância – ou graça – do riquíssimo universo das carreiras jurídicas. Em tempos de graves subversões dos princípios democráticos, sobretudo o da Separação dos Poderes, e de franca e aberta campanha de enfraquecimento do Poder Judiciário, só nos resta mesmo é rir. Ou xingar muito no Twitter. Bom, eu não gosto do Twitter. Então, xingo aqui no NED mesmo :)

O tema de hoje é sério. Algo que sempre me traz muita preocupação. Faremos uma reflexão sobre a lei e nossa missão, como profissionais do Direito, de fazer de sua observância nossa missão de vida.

E de tanto refletir a respeito, cheguei à conclusão de que a sensação de angústia que me acomete quando sou obrigado a aplicar determinadas leis (ou qualquer espécie normativa cogente), sinto-me como um garçom do restaurante mais sujo da cidade. Explico:

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Tenho profundo respeito pela profissão exercida pelos garçons. Respeito e admiração. Se é difícil lidar com pessoas em qualquer situação, some-se a isso pessoas com fome. A fome é o que separa os seres humanos das bestas-feras. Não é incomum aflorar a rispidez, a intolerância, a impaciência desmedida, que não raras vezes descamba para a agressividade selvagem. E ainda têm de manter o bom humor, o sorriso, a gentileza, por maior que seja a grosseria sofrida. Certamente o tratador dos leões do zoológico municipal passa por menos apuros do que nossos guerreiros dos restaurantes. Houve até um zelador do zoológico de São Paulo que virou magnata de uma empresa de software... mas deixemos isso pra outro momento.

Além disso, deve ser difícil para um garçom de boa índole – como a franca maioria – servir seus clientes, sobretudo aqueles que sempre o tratam bem, que são educados, corteses, simpáticos e os enxergam como os trabalhadores honestos que são, quando a cozinha do restaurante não é das mais limpas.

Imaginemos aquele casal simpático de velhinhos que há anos senta naquela mesma mesa e sempre pede o mesmo prato. Duas, três, cinco décadas atrás quando começaram a frequentar o estabelecimento por certo tratava-se de um lugar de respeito, onde tudo era da melhor qualidade e com a mais absoluta higiene. Passaram-se os anos, mudaram-se os donos, o desrespeito generalizado com tudo e todos comum hoje no mundo chegou à cozinha daquele pequeno empreendimento gastronômico.

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Mas o casal de velhinhos continua frequentando o local, certos de que segue mantendo a qualidade de outrora. Afinal, até o garçom é o mesmo que os atende há anos!

O garçom tem um compromisso com o restaurante. É seu local de trabalho. Não lhe cabe tecer comentários acerca do que se passa nos bastidores. Cumpre-lhe, pois, anotar os pedidos, providenciar para que sejam elaborados e entregá-los prontos e quentinhos aos famintos, com a possível brevidade e solicitude. Se há ratos na cozinha, baratas, mandruvás (aquelas moscas enormes, sempre lembradas pelo meu amigo e compadre, advogado, aniversariante de ontem, Daniel Fabrício); se os novos cozinheiros não usam nenhum tipo de protetor nem sequer lavam as mãos; se cospem na comida de propósito e usam insumos estragados na preparação dos pratos, furtando para si os ingredientes bons, o que pode fazer o pobre garçom, senão tentar, pelo menos, atender aos clientes da melhor maneira puder?

Pode o garçom recomendar aos clientes que não frequentem mais aquele local, pois é sujo, asqueroso, nojento, insalubre, que serve uma comida potencialmente letal repleta de salmonela e nojeiras de toda espécie? Pode ou deve? Ou não?

Como Juiz, sinto-me exatamente nessa situação: tal qual o garçom do restaurante mais lazarento da cidade.

Desde o então chamado primário, na Escola Estadual Nossa Senhora Auxiliadora, no pequeno município de Lins, Estado de São Paulo, onde nasci e vivi até os oito anos de idade, quando passei a morar em Curitiba, lembro-me da “Tia Rose” ensinando sobre os tais “três poderes”. Era plena época de Assembleia Nacional Constituinte, então, a política estava em todos os jornais, todos os assuntos, chegando até às salas do primário.

Dizia ela que o Poder Legislativo era quem fazia as leis. O Executivo, quem cumpria as leis. E o Judiciário era aquele que era chamado quando alguém descumprisse as leis. Confesso que não entendi bem na época, até porque eu não sabia exatamente o que era essa tal “lei”.

Infelizmente nosso atual Governo Federal parece ter faltado às aulas da “Tia Rose”... basta ver que ontem mesmo repetiram o absurdo inominável cometido há alguns anos, ao modificarem a proposta orçamentária do Poder Judiciário antes de seu encaminhamento à Câmara dos Deputados, em flagrante ofensa à autonomia orçamentária do Judiciário. Isso é tão absurdo que vou parar por aqui, sob pena de me alongar demais no tema. Dica: Lei 1.079/50.

Pois bem. Passados alguns anos, descobri que o papel do Poder Judiciário é o de fazer cumprir as leis criadas pelo Poder Legislativo, este, composto por representantes do povo democraticamente eleitos. O povo, como titular de todo o Poder, elege seus representantes para, em seu nome, exercê-lo, criando leis para lhes trazer melhores condições de vida.

E hoje passo meus dias (tardes, noites...) analisando os pedidos trazidos pelos jurisdicionados em milhares de processos, aos quais devo aplicar a mens legis. A lei do povo. Claro, é sempre possível julgar contrariamente à lei, mas não é recomendável, senão em situações muito excepcionais.

Há muitas leis boas por aí. A nossa Constituição da República, de 1988, é uma das melhores que existe, se não a melhor. Certamente a melhor que já tivemos. Nosso Código de Defesa do Consumidor também é considerado o melhor do mundo.

Há, porém, algumas leis ruins, outras péssimas, outras inacreditáveis. E há o projeto do novo Código de Processo Civil, que não consigo classificar em palavras. Imaginem-me socando a mesa e o teclado profundamente irritado e com lágrimas de vergonha de pertencer ao mundo jurídico. Acho que é o melhor que posso fazer pra explicar o que penso desse projeto do “novo CPC”, já que habilidades artísticas não estão dentre minhas poucas virtudes.

É muito difícil para mim, como Juiz, aplicar determinadas leis, sabendo de onde elas vieram e como foram feitas.

Na última década simplesmente tenho a impressão de que desapareceu o pouco que ainda restava de seriedade na política brasileira, e que hoje as leis são feitas exclusivamente para a tutela de interesses particulares, escusos e canalhas. Se há uma coisa que não se cogita é o interesse público. Os atuais objetivos de praticamente toda lei são roubar dinheiro público e ganhar votos, direta ou indiretamente. A ordem varia conforme o objeto da lei. Em outras o objetivo é apenas furtar-se a escândalos e a obrigações morais. Mas o fato é que praticamente não há mais leis voltadas ao atendimento dos anseios da sociedade. Se eventualmente parece haver, acredite: é com vistas à conquista de votos.

Se o eleitor não presta, como tantas vezes tenho visto, e os candidatos acabam não sendo muito diferentes, e a democracia funciona, levando ao Poder representantes fiéis de seu povo, como esperar que algo de bom saia disso? É como na famigerada teoria dos frutos da árvore envenenada. Só que neste caso é sujeira, e não veneno.

Não vou cair na mesmice de citar as leis que autorizaram doações a cuba, ou a países da África, ou mesmo a lei que concede uma “aposentadoria”, extraída de nossos bolsos, aos “heróis” das copas do mundo do passado. Nem vou falar da lei do regime especial de contratação de obras para a copa do mundo, que autorizou, basicamente, a contratação de obras sem licitação e pelo preço que o governo achar que deve pagar. Curiosamente, são contratadas as empreiteiras que fizeram doações às campanhas políticas. Mas é coincidência, claro!

Vou começar falando do nosso já tão conhecido Código Penal, após a reforma trazida pela Lei 7.209/84, com a infeliz previsão do sistema progressivo de penas (Art. 33, § 2o). A teoria é linda, com base no primado da ressocialização como principal dentre as funções da pena, dignidade da pessoa humana e tudo mais. Maravilha. Acontece que em verdade é só uma de muitas leis que já vieram – e outras tantas em vias de surgirem – que pretendem deixar criminosos na rua e o povo à sua mercê. É um dos dispositivos legais responsáveis pela seguinte realidade: se o sujeito pratica um assalto e é condenado à pena de oito anos de reclusão, e está em uma cidade na qual não hajam vagas em colônias penais do regime semiaberto, nem se consiga de pronto tais vagas, sabe o que acontece? Nada. O sujeito fica completamente solto! Somos obrigados a fazer a chamada “harmonização” do regime e botar o vagabundo na rua. E nem se cogite de lhe aplicar alguma condição (prestação de serviços, por exemplo), pois há súmula dos Superior Tribunal de Justiça proibindo tal prática.

Não consigo enxergar a lógica segundo a qual caso não existam vagas no regime semiaberto (que é uma prisão, com celas, barras e tudo o mais, apenas guarnecida por menor segurança e possibilidade, em alguns casos, do exercício de trabalho externo) deve-se soltar integralmente o criminoso condenado. Tá mais parecendo a lógica das relações de consumo quando há overbooking na classe econômica: manda o cara pra executiva. O problema foi algum gênio resolver aplicar isso na execução penal!

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Ou seja, pra que construir presídios – já que preso não vota – e equipá-los com o mínimo de respeito e dignidade que até os bandidos têm direito? Muito mais fácil criar mecanismos que dificultem as prisões. Assim, o meliante pode cometer crimes mais à vontade, sem o risco de vir se tornar um estorno e um custo dentro da cadeia. Pra que aparelhar a segurança pública, investir em educação, nas polícias sucateadas... isso não atende a nenhum interesse de quem está no governo. Atenderia ao tal interesse público, mas isso não tem a menor importância. Melhor deixar esses tais bandidos soltos mesmo. Afinal, em Brasília temos uma vasta quantidade de agentes de polícia legislativa, de policiais federais. Há carros blindados, helicópteros. Pra que se incomodar com essa tal segurança pública?

Outro exemplo, o #@%ˆ*& novo Código de Processo Civil. Se aprovado como está (e a cada nova emenda está ficando ainda pior), terá sido o maior retrocesso do Direito brasileiro desde o AI-5.

Muito do que há de bom no processo civil atual corre o risco de desaparecer. Quase tudo que há de ruim permanece exatamente como está. É simples assim. Não tem nada de bom de verdade. Até a “penhora on line”, o famoso “BACENJUD”, maior ferramenta de efetividade do processo de execução de todos os tempos, corre o risco de desaparecer ou ser condicionado de determinada forma que ficará completamente inútil.

Vejo hoje como é difícil ter que aplicar essas leis ridículas, absurdas, canalhas. Fico profundamente constrangido ao decidir com base nelas. A todo momento em que fundamento uma decisão dizendo “indefiro o pedido, com base no artigo numero tal da lei numero tal”, enxergo a face de um certo Deputado Federal afrontando o antigo Presidente do Supremo Tribunal Federal com seu gesto patético de punho esquerdo erguido, sendo ovacionado por seus “companheiros”, todos gordos das refeições compradas com nosso dinheiro.

Tenho procurado julgar com base no direito como um todo e no meu senso de justiça. Tomo por base, sobretudo, a Constituição, de Ulisses Guimarães e tantos outros políticos decentes que haviam na época. Tinham aprendido a lição depois de apanharem bastante da ditadura militar. Mas o tempo passou e a lição foi esquecida. Não sou a favor da ditadura, nem da pseudodemocracia (alguns chamam de corruptocracia, e o termo é perfeito) que hoje existe no Brasil. Mas talvez seja hora de outra lição.

Os Estados Unidos que tanto se admira internacionalmente vivem uma política conhecida como “Judges’ Rules”, ou seja, um Direito baseado precipuamente em precedentes judiciais, a chamada common law. Na prática, é direito o que o Judiciário diz que é. A lei tem caráter bem secundário.

Sem querer puxar a sardinha pro meu lado, talvez seja disso que o Brasil precisa. Um Judiciário mais forte, mais independente e mais incumbido da missão de determinar os rumos do país. Creio que teríamos mais Justiça do que temos hoje.

Uma coisa é certa: um povo é tão forte e tão livre quanto o é seu Poder Judiciário. E nossa liberdade está cada dia mais ameaçada.

Um grande abraço a todos!

Assintura Sérgio

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