Em uma das paredes da casa, o lembrete: a vida começa aos 100 anos. Na cabeça, determinações que nenhum obstáculo segura. No coração, a vontade de ajudar os outros. A bacharel em direito Maria MagdalenaVaz, 85 anos, é lúcida, discreta e de fala mansa. Aos 80 anos, decidiu voltar às salas de aula e estudar aquilo que sempre sonhou: as leis, os códigos penais e todo o universo da advocacia. Nem as três hérnias de disco que a colocaram temporariamente em uma cadeira de rodas a impediram de conquistar o diploma. Um minuto de conversa com ela e o que não faltam são histórias para contar sobre a vida de uma mulher que não teve medo de preconceitos e enfrentou tudo com o poder da educação.
Na infância, a entrada do cartório em Ipameri, em Goiás, era um lugar especial. Foi o movimento de chegada e saída dos advogados que despertou em Maria Magdalena a paixão pelo direito. “O meu pai era o dono do cartório. Ficava ali sentada apreciando a vinda dos advogados. Achava bonito”, relembra a moradora da Asa Norte. Depois disso, a menina que quase foi freira estudou em grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, e se formou em letras anglo-germânicas na Universidade Católica de Goiânia.
Estudar nunca foi um problema. Já entrou na escola sabendo ler e escrever. “Aprendi com o meu pai”, conta. Conhecimento sempre foi uma paixão. Fala inglês, português e alemão. Trabalhou como professora, secretária executiva bilíngue e tradutora. Aposentou-se como tradutora oficial no Ministério da Aeronáutica. Não apostou no direito antes, pois, entre outras razões, o primeiro marido a aconselhou a não entrar para um ambiente tão masculino. “Por proteção e cuidado”, justifica a bacharel.
A filha, Cilena Letícia Jaime, 62 anos, mantém laços com a mãe que extrapolam o parentesco. São amigas e dois opostos que se complementam. Enquanto uma se dá bem com as palavras, a outra prefere os números — Cilena é engenheira civil. “Em uma viagem para Gramado (RS), vi uma placa falando que a vida começava depois de certa idade. Tinham várias. Mas fiz questão de pedir a maior que tivesse para a minha mãe. Depois de tanto tempo, ela decidiu realizar o sonho dela, e ela tem vocação para isso”.
Da parceria, saiu o trabalho de conclusão de curso (TCC) de Maria Magdalena na Unieuro. A mãe ditava as palavras difíceis, e Cilena digitava com cuidado. No fim do ano passado, a aluna apresentou a monografia sobre morosidade processual para uma banca de advogados. “São cerca de 100 milhões de processos parados no Supremo Tribunal Federal (STF). É um tema em efervescência de soluções”, argumenta a bacharel. “No dia da apresentação do TCC, ela fez questão de se levantar da cadeira de rodas e falou em latim. Eu não entendi nada, mas os professores adoraram, e ela foi muito aplaudida”, lembra a filha.
Com a mesma determinação que Maria Magdalena enfrentou as dificuldades da vida e, principalmente, as duas separações, também deixou de lado a cadeira de rodas. Ela decidiu quando era o momento de deixá-la. “Sou de muitos propósitos”, afirma. “A minha mãe quebrou muitos tabus”, complementa Cilena.
Humanização
Para Maria Magdalena, a base de sua formação com freiras franciscanas missionárias do Egito sustentou a força do conhecimento. “A primeira faculdade ainda ajudou muito, porque o direito vem do romano e, modéstia à parte, sou boa no latim”, conta. O mais difícil nos cinco anos da segunda faculdade foi aprender direito tributário. Mas a possibilidade de mudar a vida de alguém encantou a formanda: “Pensar na restauração do ser humano quando ele entra como acusado pela Justiça”.
No caderno de planos, o próximo passo é ser aprovada na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Se for necessário atuar na área, atuarei”, revela, com segurança. “Ela sempre diz que quer defender alguém que ela goste, uma pessoa mais carente e uma causa que ela abrace”, acrescenta a filha. Estender o olhar ao próximo é algo da personalidade de Maria Magdalena. Há alguns anos, ela viu a administradora Vanuza Barbosa Bispo formar uma família. Vanuza começou a trabalhar na casa da bacharel aos 13 anos. Foi embora aos 27, mas saiu formada em administração de empresas. Em seguida, fez pós-graduação e se casou. “A senhora gosta de fazer o bem, não é?”, questiona a reportagem. Maria Magdalena responde com a mesma sutileza de sempre: “Sou somente a alavanca do princípio de Arquimedes”. Ela ajuda e incentiva as pessoas a buscarem uma formação.
“Aeróbica no cérebro”
“Ela é uma entusiasta da vida, um exemplo”, define o advogado Arnaldo Ryozo Suzuki, 64 anos. Ele estudou com a bacharel na faculdade de direito. No primeiro dia de aula, todos se surpreenderam com a colega. “Mas ela sempre foi muito disposta a aprender coisas novas e a conviver com as diferentes idades e expressões”, detalha. Para os mais jovens, era como uma “mãezona”. Interessada, sempre participou de igual para igual, visitava os tribunais e, depois, comentava com os colegas. “Vejo isso em poucos jovens. Com ela, aprendi a não desistir nunca e a sempre buscar conhecimento”, conclui Arnaldo.
O convívio com um novo círculo de amigos modificou o vocabulário de Maria Magdalena. “Ela soltava umas gírias. Eu sou a velha e não dou conta da minha adolescente favorita”, brinca a filha da bacharel. Como em tudo na vida, a mulher se entregou e se dedicou aos anos de faculdade. Não faltava às aulas, gostava de ouvir os professores e, para a hora da confraternização, levava pão de queijo para a turma. “Era uma felicidade aprender com os mais novos. Era uma relação de troca, de doação”, argumenta Maria Magdalena. “Mamãe fez aeróbica no cérebro”, complementa Cilena Letícia.
Força
Arquimedes descobriu que todo corpo imerso em um fluido em equilíbrio, dentro de um campo gravitacional, fica sob a ação de uma força vertical. Essa força é conhecida como empuxo. Denomina-se empuxo a força, dirigida para cima, que qualquer líquido exerce sobre um corpo nele mergulhado.
"São cerca de 100 milhões de processos parados no Supremo Tribunal Federal (STF). É um tema em efervescência de soluções”
Maria Magdalena
"No dia, ela fez questão de se levantar da cadeira de rodas e falou em latim. Eu não entendi nada, mas os professores adoraram, e ela foi muito aplaudida”
Cilena Letícia, filha
"Ela sempre foi muito disposta a aprender coisas novas e a conviver com as diferentes idades e expressões. Vejo isso em poucos jovens. Com ela, aprendi a não desistir nunca e a sempre buscar conhecimento”
Arnaldo Ryozo Suzuki, colega de aula
Fonte: Diário de Pernambuco
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