O princípio da insignificância tem a atribulada missão de reconhecer o que é, penalmente, nada e o que vale a persecução criminal. Ao passo que seu reconhecimento é oscilante nos 27 tribunais estaduais e nos 5 tribunais regionais federais, incumbe constitucionalmente ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelecer um parâmetro, a fim de que haja o mínimo de segurança jurídica.
Pois o parâmetro estabelecido na corte é, no mínimo, assustador.
O Justificando denunciou, meses atrás, o que seria o menor tráfico do Brasil. Era o caso de Maurene Lopes, denunciada e condenada na primeira instância, no Tribunal de Justiça de São Paulo e no STJ a quase sete anos por causa de 1g de maconha. O peso seria o equivalente à metade de uma bala Mentos, ou ainda a duas balinhas Tic Tac. A Defensoria Pública precisou ir até o Supremo para que se reconhecesse que era absurdo processar alguém por 1g de qualquer material que seja. Hoje, graças a matéria, Maurene está livre.
E o que dizer quando o caso de Maurene é infinitamente maior ao julgado de José? Pois nesta semana, o STJ, pelas mãos do Min. Nefi Cordeiro (foto), confirmou a condenação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais a 4 anos e 11 meses por tráfico de 0,02g. Seria cômico, se não fosse absurdo, revoltante e trágico.
Entenda o caso
O início do caso já revela graves falhas judiciais: o suposto tráfico data do ano de 2000, a quinze anos atrás, na pequena Cataguases (MG). É dizer que há mais de uma década o Judiciário se presta a discutir a relevância penal de 0,02 gramas de maconha.
Talvez José não tenha contado com a clemência dos juízes dado seu passado; cometera o tráfico dentro do complexo prisional, enquanto já cumpria pena por outro crime. Pensa em 0,02g. Agora imagina essa quantia dentro do cárcere, onde circula, a todo tempo, todo tipo de entorpecente. Condenar alguém em cárcere a 4 anos e 11 meses de prisão por entregar a outro preso 0,02g de maconha revela a profunda distância da corte, em seus palácios, da casta mais inferior da sociedade brasileira: o preso.
Ministro Nefi Cordeiro segue entendimento pacífico e engessado de STJ e STF
José Manoel Lopes dos Santos é mais uma estatística de um entendimento pacificado, mas não pacífico, das instâncias superiores: não se admite discussão sobre insignificância em crimes que envolvem entorpecentes. Ponto final. Uma vez que o crime seria perigo presumido, a quantidade é irrelevante. O julgado usado como referência neste e em muitas outras decisões da corte é o HC 240.258, de relatoria da Min. Laurita Vaz.
Ou seja, ao bater o martelo de que quantidade é irrelevante, o STJ nivela todos os casos no patamar da condenação, seja gigante, médio, pequeno ou minúsculo traficante – fica difícil entender por qual razão 0,02g não é considerada uso, pois sequer é quantia comercializável. Em outras palavras, ao repetir um entendimento de que quantidade não ingressa no juízo de valor do julgamento, excrescências como a condenação de José Manoel são produzidas; tudo pela abdicação ao pensamento.
Apesar de entendimento pacificado ser injusto e assustador, ainda há quem pense
Quando alguém pensa, a Justiça fica mais próxima. É o caso de quando o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal abandona as amarras do pensamento dominante da irrelevância da quantidade de entorpecente e reconhece a insignificância em crimes que envolvem entorpecente – HC 93.822.
No caso específico de José, um desembargador do TJMG pensou. O desembargador Alexandre Victor de Carvalho foi voto vencido no julgamento da apelação que manteve a condenação do réu: a conduta se apresenta absolutamente insignificante, não realizando a tipicidade material necessária para reconhecimento de um fato como delito contra a saúde pública.
Para Carvalho, apesar de crimes que envolvem entorpecente serem classificados de perigo presumido, isto é, independem de análise sobre o dano que a ação causou, juiz existe para valorar a conduta caso a caso: Ainda que os delitos descritos na Lei 11.343/06 sejam de perigo presumido, a necessidade de aferição da lesividade persiste, já que imperioso o juízo de danosidade social de um comportamento que se pretenda qualificar como criminoso.
Como Celso e Carvalho, há outros juízes que contestam esse entendimento das instâncias superiores. Inclusive, são por causa de pessoas como essas que entendimentos “pacíficos” são “despacificados”. Necessários para transformação da naturalidade com a qual o injusto é reproduzido todos os dias.
Fonte: Justificando
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